Folha de S.Paulo
A antiga indústria clientelista dos carros-pipa no semiárido brasileiro foi turbinada nos últimos anos por uma cadeia que agora tem um novo ponto inicial: o volume recorde de emendas parlamentares de Brasília para a compra e indicação dos destinos desses veículos. No ponto final, estão os prefeitos e vereadores que decidem quem receberá água.
O processo desse compadrio 2.0 se dá da seguinte forma: o parlamentar tem total autonomia para indicar ao governo federal onde e como quer gastar a verba a que tem direito, o órgão federal loteado pelo centrão faz a compra e a entrega do equipamento, e a Prefeitura (ou a entidade) recebe a doação, enaltece o padrinho político e passa a usar o caminhão-pipa, neste caso, muitas vezes com objetivo eleitoral.
Impulsionada pela verba política, a doação de caminhões-pipa pela Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), por exemplo, aumentou 464% de 2018 a 2022.
Os veículos chegaram a ser entregues até em carreatas com políticos desfilando pela cidade às vésperas da eleição. Boa parte dos equipamentos vem de uma mesma empresa, praticamente sem concorrência, e é entregue em cidades com padrinhos políticos, não onde existe uma demanda mais clara por isso.
A concentração de carros-pipa em redutos políticos é mais uma consequência tanto do loteamento de órgãos federais como do direcionamento das emendas parlamentares, que empoderam o Congresso e esvaziam programas do Executivo.
Os recursos empenhados com emendas saltaram de R$ 13,9 bilhões, em 2019, para R$ 26,3 bilhões, entre janeiro e setembro de 2023.
No caso dos órgãos, tanto a Codevasf como o Departamento Nacional de Obras Contra as Secas (Dnocs), por exemplo, foram entregues pelo ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) ao centrão e são mantidos dessa forma pelo presidente Lula (PT), dentro da política conhecida como “toma lá dá cá”.
A Folha já mostrou situação semelhante à dos carros-pipa com as entregas de caixas-d’água, cisternas e poços. Enquanto pessoas andam horas para pegar água em regiões de baixa influência de emendas, em cidades com padrinhos políticos fortes os equipamentos apodrecem em depósitos.
No lado mais fraco dessa história está a população do semiárido que sabe que a diferença entre passar sede ou receber o suprimento de água para o mês pode depender do número de telefone de um vereador ou assessor político.
No município de João Câmara (RN), a distribuição de água p or carros-pipa está a cargo da prefeitura e, segundo Dioclécio Mendonça, liderança do assentamento Santa Terezinha, uma comunidade indígena, o volume e o ritmo das entregas são influenciados por interesses políticos.
“Já tivemos que dividir uma pipa d’água para duas cisternas na comunidade, enquanto as famílias que conseguem dialogar com o prefeito, ou que têm um diálogo com determinados vereadores, conseguem uma pipa d’água inteira, de 14 mil litros”, diz Mendonça.
“Infelizmente, ainda tem essa concepção do voto de cabresto. E aí utilizam a escassez da água, a necessidade das famílias, para utilizar como mecanismo de troca de votos”, completa.
Lideranças ouvidas pela Folha na cidade dizem que, geralmente, os pedidos aos vereadores agilizam a atuação lenta da Prefeitura. A condição implícita é que se vote em tal político na próxima eleição.
Um alívio é a operação carro-pipa mantida pelo Exército, que, segundo relatos, escapa do clientelismo das prefeituras. A ação, porém, é limitada e temporária.
Bolsonaro, em inauguração de um trecho da transposição do rio São Francisco ainda como presidente, chegou a dizer que “acabou a troca de votos por carro-pipa no Nordeste”.
Na prática, seu governo aumentou essa dependência. Enquanto a política que dava autonomia à população por meio de cisternas foi praticamente desmontada, explodiu a destinação de caminhões-pipa a redutos de políticos influentes.
As doações de caminhões-pipa pela Codevasf passaram de apenas 22, em 2018 (antes do governo Bolsonaro), para 124 em 2022, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação. O número dessa frota recente é ainda maior, uma vez que o levantamento não inclui veículos vindos de outros órgãos do governo federal e das administrações estaduais.
No mesmo período, a instalação de cisternas de 16 mil litros, que armazenam água da chuva, foi de 32.874 para 5.946, queda de 82%.
O resultado é a perpetuação da dependência desse tipo de serviço, como acontece em Betânia do Piauí (PI), cidade que não possui água encanada nem mesmo na área urbana.
Moradora da Vila do Mel, povoado que fica no alto da Serra do Inácio, Clarice Conceição dos Santos, depende da boa vontade da prefeitura para conseguir encher o reservatório que possui.
“A gente sempre tem que pedir para a prefeitura e esperar, mas nem sempre a água chega. Quando eles não mandam, a gente compra”, afirma Clarice, que diz pagar até R$ 120 por um caminhão de água.
Estudo da Embrapa Territorial analisou locais do semiárido de acordo com a necessidade de cisternas e outras tecnologias —embora foque reservatórios, por analisar diversas variáveis, ele também dá noção dos locais onde a população tem maiores problemas decorrentes da escassez hídrica no semiárido.
Cidades classificadas como de prioridade muito alta e alta, como Betânia, receberam 21% dos 356 caminhões-pipa localizados pela reportagem desde 2018. Os locais com prioridades médias, baixas e muito baixas totalizaram 33% das doações.
O maior percentual, de 46%, é formado por municípios de fora do semiárido, tanto na região Norte como em cidades litorâneas do Nordeste.
As entregas dos veículos acontecem muitas vezes às vésperas do período eleitoral. No ano passado, por exemplo, um pátio cheio de equipamentos vindos da Codevasf em Mossoró (RN), incluindo dez caminhões-pipa, se esvaziou após o pleito. A cidade recebeu cinco deles, segundo dados da estatal.
Na mesma cidade e período, parte da frota foi usada em uma carreata pelas ruas do município, com participação do prefeito Allysson Bezerra (atualmente no União Brasil). Em rede social, ele aproveitou para agradecer ao então presidente Bolsonaro.
A reportagem analisou licitações da Codevasf, nas quais, em grande parte dos casos, a vencedora foi a concessionária Deva Veículos. Esses pregões, principalmente os do ano de 2021, foram marcados pela inexistência de competidores ou baixa concorrência.
Em um deles, no Rio Grande do Norte, a Deva concorreu sozinha e não deu desconto algum. Em outro caso relacionado à aquisição de 29 veículos, em Minas Gerais, ela teve só um concorrente, que fez lance acima do valor máximo aceitável indicado pela Codevasf, o desconto saiu inferior a 1%.
O dono da empresa é Vittorio Medioli, prefeito de Betim (MG), que chegou a defender a separação do Nordeste do Brasil após a derrota de seu aliado Bolsonaro nas eleições. Após a repercussão da manifestação, ele se retratou e disse na verdade ser contra a divisão territorial.
Não são apenas os veículos vindos do governo federal que alimentam a indústria dos carros-pipa. Em setembro, um veículo do governo alagoano foi entregue em evento com ares de comício pelo prefeito da sertaneja Mata Grande (AL), Erivaldo Mandú (PTB).
Tempos depois, a reportagem esteve no local, o pequeno povoado de Santa Cruz do Deserto, e encontrou o caminhão estacionado em um posto de gasolina. Na vizinhança, os moradores dizem que a dinâmica é apelar ao vereador da região, geralmente alguém próximo do grupo político do prefeito.
“Tem uns colegas conhecidos deles, se a gente pedir eles falam com eles (vereadores)”, diz o agricultor Luís Araújo, 35, sobre os carros-pipa.
Estatal afirma que doações seguem análises técnicas
A Codevasf afirmou que as doações de caminhões-pipa “são precedidas de análises de adequação técnica, conformidade legal e conveniência socioeconômica, independentemente da origem dos recursos empregados”.
A estatal afirmou que as doações dão suporte ao fornecimento de água para comunidades rurais difusas, especialmente durante longos períodos de estiagem nas regiões atendidas pela companhia.
Sobre os pregões para compras de veículos, afirma que são realizados pelo portal de compras do governo e abertos à livre participação. Os procedimentos, diz a empresa, são realizados com estrita observância à lei, e a competitividade é “determinada por circunstâncias de mercado”.
O Grupo SADA, do qual a Deva Veículos faz parte, afirmou que a empresa participa de pregões de acordo com a Lei de Licitações e Contratos e todos os seus processos são auditados e estão documentados e disponíveis no Portal da Transparência .
“A empresa tem uma rígida política de compliance e cumpre com todas as etapas obrigatórias dos editais, que são públicos e nacionais, obedecendo, portanto, à modalidade de concorrência e aos preços de referência de mercado estabelecidos como teto pela Ata de Registro de Preço (ARP)”, completou.
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